"Esse direito que nós temos aqui é o direito construído no século XIX pela burguesia. Os nossos juízes têm uma formação burguesa, é um direito individualista e individualizante", afirma Miguel Baldez. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo media.
Por Eduardo Sá, Gabriel Bernardo e Gilka Resende, 04.07.2010
Do alto dos seus 80 anos, Miguel Baldez nos ensina que mesmo os direitos elementares para a sobrevivência das pessoas, como o direito a um teto, não será garantido sem união e mobilização. O procurador aposentado do estado do Rio e eternamente professor considera os movimentos sociais, como o MST, vitais para a resistência. Sendo assim, é fácil descobrir porque não tem espaço na mídia comercial. Nos anos 80, Baldez foi responsável, junto a outros procuradores, pela criação do Núcleo de Terras da procuradoria do estado. O órgão deu uma importante contribuição para a garantia do direito à moradia e à terra pelas populações pobres. “Porque o povo tem que entender, ou ele se organiza para resistir ou vai dançar, no sentido mais atual da dança: vão despejá-los sem dó nem piedade”, sentencia.
Como você entrou na militância pela moradia? Nos conte um pouco da sua história.
Eu tenho uma posição de esquerda desde que eu começo realmente a entender a vida. Eu tinha uns 31 anos, foi na renúncia de Jânio Quadros. Eu nasci em 1930. Em 1937, meu pai foi trabalhar na Panair do Brasil e tinha um companheiro judeu alemão. A guerra vem em 1939 e esse seu companheiro fazia um esforço para tirar a mãe antes que explodisse a guerra: ela sofrendo já todas as perseguições que eram feitas aos judeus a Alemanha.
E eu moleque com 8 anos, numa casa pequena e simples no subúrbio, pobre, filho único. Eu ficava ali ouvindo aquele papo, e papai sempre numa postura rigorosamente anti-fascista. Tinha vários amigos comunistas, mas ele não aceitava talvez pelas dificuldades espiritualistas dele. Minha família era espiritualista. Eu ficava ouvindo aquela conversa e tinha horror do fascismo desde os meus 8 anos. Papai dizia para mim: “Ô cara, você é comunista, você que não percebeu ainda”.
E eu sempre sentia, mas não tinha uma avaliação nítida das minhas opções políticas. Até que em 1960 o meu pai morre. Em 1961 vem a renúncia do Jânio Quadros, eu estava estudando para o concurso de procurador do estado. Aí as coisas ficaram claras na minha cabeça: foi a explosão da renúncia do Jânio que me fez entender. A coisa bateu assim na minha cabeça, e eu disse: “Bom, agora é a hora de eu ler Marx”. Fiz o concurso achando que tinha sido reprovado na primeira prova, até que veio a notícia de que eu tinha passado. Para mim era fundamental que eu fosse procurador, para eu poder escapar: já era casado, tinha filhos. Quando eu fui nomeado procurador, em 63, eu já tinha uma leitura política muito forte e já estava numa militância.
É nesse período que você se aproxima da questão da moradia?
Não, nesse momento eu entrei de corpo e alma no movimento sindical. Foi o período em que vai surgindo o sindicalismo no ABC, é um sindicalismo de combate, de enfrentamento. Eu estava no Sinpro [Sindicato dos Professores]. Eu que não era do PT me identifiquei com aquele grupo porque queria realmente o enfrentamento, um sindicalismo que fosse de libertação da classe trabalhadora.
O paradigma de pensar uma nova forma de luta…
Uma nova forma de luta sindical, era o momento histórico para isso. Nós fizemos uma comissão de fábrica vitoriosa naquela famosa greve da Fiat, em que os sindicatos se apelegaram e os trabalhadores na comissão de fábrica lideraram a greve. Esse grupo era de um PT combativo e naquela altura eu senti necessidade de ir para o PT. Nisso surge na procuradoria de estado um grupo com 13 associações de moradores da zona oeste, liderados por uma companheira da FASE, a Grazia [de Grazia], que hoje está no governo do Eduardo Paes. O prefeito era o Emir Haddad, o município na época não tinha procuradoria, e ele disse que era uma questão jurídica e para procurar a procuradoria do estado. Eles foram lá, e naquela altura um grupo mais progressista de uns quatro procuradores, o que é uma coisa muito rara, já tinha resolvido democratizar a procuradoria do estado.
"Esse direito que nós temos aqui é o direito construído no século XIX pela burguesia. Os nossos juízes têm uma formação burguesa, é um direito individualista e individualizante", afirma Miguel Baldez.
Nessa época já estavam pipocando muitas ocupações urbanas de terra?
Ainda não. O que havia na zona oeste eram processos de loteamentos que eram iniciados e abandonados pelo loteador, que seguia o preço e não realizava as obras. Esses grupos é que procuraram o prefeito, que os encaminhou a nós. Foi nesse momento, quando nós ganhamos a procuradoria, que passamos a fazer um trabalho compatível com a redemocratização.
Eu já tinha a minha tradição de militância, e entre vários colegas o Eduardo [Seabra] me chamou para formar uma comissão para examinar o que poderíamos fazer. Chegamos a nossa conclusão, e a encaminhamos ao Brizola que encaminhou ao Marcello [Alencar], o prefeito biônico da época [nomeado pelo governador]. O que nós esperávamos aconteceu, o Marcello botou na gaveta. Aí nós pensamos: o Eduardo poderia, de ofício, criar um núcleo na procuradoria, a comissão tinha esgotado as suas ações para enfrentar essa questão. Aí foi criado o Núcleo de Terras e dentro dele criamos o Coletivo da Terra.
Esse coletivo que estabelecia contato com essas comunidades?
Ele discutia todas as questões políticas e era formado pelas comunidades, era aberto. O Núcleo de Terras vai ganhar uma força muito grande. Fui praticamente a todas essas comunidades na zona oeste, fazíamos a notificação, suspendia-se o pagamento e eu ia à própria comunidade dizer porque tinha sido suspenso. Eu que era o coordenador não poderia receber qualquer loteador que não viesse encaminhado pelos integrantes do loteamento, porque era uma forma de exigir do loteador que cumprisse as suas obrigações. Nós assumíamos os encargos do loteador faltoso e o município fazia a obra que ele não tinha feito. Tínhamos conosco uma arquiteta que ia fazer o laudo na própria comunidade quando nós suspendíamos o pagamento, para ver que obra precisava ser feita. Esse laudo era feito com a participação da comunidade e quando era aprovado, nós o encaminhávamos para a engenharia. Isso é botar o povo no poder. O segundo fato era manter a mobilização. Aí o coletivo votou essa posição: a comunidade que se desmobilizar perde a vez. Então eram dois critérios, o primeiro cronológico e o outro da mobilização. E aí fizeram realmente um trabalho, que eu repito, talvez o mais importante da procuradoria do estado.
"A primeira resistência foi essa dos companheirinhos favelados, essa foi importante porque a favela tem uma nova concepção: passa a ser uma solução para a moradia", destaca Baldez.
"A primeira resistência foi essa dos companheirinhos favelados, essa foi importante porque a favela tem uma nova concepção: passa a ser uma solução para a moradia", destaca Baldez.
Esses critérios estão no estatuto do Núcleo de Terras, ainda são os critérios adotados?
Não, aí eu vou dizer como isso acabou. Vem a eleição e Darcy Ribeiro não ganhou, que era vice-governador. Depois o Eduardo me convida para dirigir a procuradoria de terras, o Darcy queria construir os Cieps e não encontrava respaldo na procuradoria do estado. Ele foi fazendo contratos com as empreiteiras e a procuradoria não dava as terras. Eu chefiando podia cobrar do meu colega procurador com mais eficiência, e isso foi um trabalho realmente simultâneo que se fez. Até que esse grupo que tinha na época a hegemonia na procuradoria do estado resolveu que era a hora de criar a procuradoria do município.
Mas essa procuradoria seguiu o trabalho que vocês desenvolviam no estado?
Pois é, é aí que vem a grande frustração. Um companheiro assumiu uma posição reservada e a procuradoria do município não seguiu o nosso projeto. Continua o Núcleo até hoje, mas essa conotação política não tem mais, essa presença da própria comunidade na ação política do município se perdeu.
Como você vê a relação da imparcialidade e o campo ideológico, na postura dos nossos juízes?
Esse direito que nós temos aqui é o direito construído no século XIX pela burguesia. Os nossos juízes têm uma formação burguesa, é um direito individualista e individualizante. Eu dou exemplo para os meus alunos que a classe trabalhadora, que seria o quarto poder, foi encapsulada na norma jurídica.
Quando você me pergunta como é que age o nosso juiz, o nosso Ministério Público, as nossas procuradorias: são todos eles formados nesse campo ideológico. Só se abrir na formação do juiz uma brecha pela qual possa passar uma cultura diferente. E qual cultura diferente é essa? A do trabalhador, exatamente esses que sofrem o processo burguês na pele. Quando nós trabalhamos esse Núcleo de Terras, daí a importância para mim teórica que tem, é que nós abrimos um espaço para a classe trabalhadora dentro do campo jurídico.
Então, é um juiz da norma, que vive no mundo das abstrações. A norma jurídica é um meio de que se vale o estado para desconstruir ou ocultar as contradições sociais.
Como é que a esquerda pode se apropriar do direito de forma eficiente a contrapor essa visão?
Bom, se apropriar do direito só ganhando o estado, só fazendo uma revolução. Mas hoje eu não posso pensar em revolução armada. Eu só vejo uma saída para esse cenário, é o movimento social, é a organização social. O caminho hoje, até que construa realmente uma ideologia mais definida, está nos movimentos populares. Aí eu tomo o exemplo do MST, ele vai usar a ocupação de terras como ação política, mas com uma eficácia jurídica: nega no concreto o direito positivado, por quê? Porque cria outra modalidade de aquisição de propriedade, que não está na lei. Isso é possível porque o Movimento Sem Terra está fazendo ocupações, e mais, rompe com a estrutura contratualista do direito burguês.
Um dos fundamentos do direito burguês é a subjetivação individualizante: se eu passo a dizer que eu sou o Eduardo, a Gilka, o Gabriel [repórteres do FM que estavam na entrevista], eu passo a ser subversivo, porque eu passei a ser um coletivo, não sou mais um indivíduo. Daí a importância que eu dou aos movimentos.
Você podia falar sobre essa luta pela moradia que se estruturou na história e no que se transformou hoje?
A primeira resistência foi essa dos companheirinhos favelados, essa foi importante porque a favela tem uma nova concepção: passa a ser uma solução para a moradia, e não uma parte doente da cidade que precisa ser extirpada. Teve a resistência das favelas contra as remoções, que foram a tônica dos governos de Lacerda, de Chagas Freitas e antes deles de Negrão de Lima. Hoje você tem Cidade de Deus, Vila Kenneddy, Vila Aliança, dentre outras, como resultados de todas essas remoções que se fizeram aqui.
Os companheirinhos vão se reunindo com o apoio da igreja e do Dom Eugenio Salles, que vai reunir advogados na própria arquidiocese para discutir a questão da favela com um olhar da fé e não com um olhar político. Todas essas forças vão confluir na direção do companheiro discriminado, os favelados. Eles sofrem um processo de exclusão social muito forte, o capital só se interessa pelo trabalhador como mercadoria, só se interessa pela sua força de trabalho.
Nas reportagens que o Fazendo Media tem feito sobre esse tema, todas as posições da secretaria são técnicas remetendo à Geo-Rio [Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro]. Como você avalia essa questão da política e a técnica como justificação?
Esse é um meio que se vale a administração para fazer os despejos massivos. A via técnica é uma via política, não é técnica. Porque com que legitimidade um instituto de geotecnia vai fazer esse laudo, quando a lei orgânica exige que o laudo seja feito por dois peritos, um representante do poder público e um representante da comunidade? A geotecnia não tem legitimidade, então o que eles fazem é um discurso competente.
A Marilena Chauí escreveu há muito tempo sobre isso, é o discurso competente: é a geotecnia que entende disso, então não se discute. Tem de discutir sim, não é uma questão de entender, a questão é outra: nós não confiamos no governo e conseqüentemente não confiamos na geotecnia. Mas mesmo se confiássemos, teria que haver um laudo com o representante do estado ou município, do poder público e do representante da comunidade.
Você participou da formulação da constituição de 88?
Participei. O município ganha uma personalização na estrutura federativa com essa constituição e, em conseqüência, tivemos as constituições estaduais e as Leis Orgânicas do Município. A Lei Orgânica do nosso município, em conseqüência da luta da classe trabalhadora favelada, tem um dispositivo, o artigo 429, que proíbe as remoções e admite no máximo o remanejamento para um outro local na mesma região para preservar o habitat do trabalhador. Essa é a grande conquista, e para isso confluíram forças de esquerda e forças da igreja democratizada pela teologia da libertação.
É hoje um instrumento jurídico de que tem se valido a classe trabalhadora para impedir os despejos massivos, mas apesar disso a força acaba preponderante. O prefeito faz um discurso sem qualquer comprometimento com a lei, mas buscando apoio das áreas jurídicas do estado. Ele fez uma reunião com a direção do Tribunal, com a direção do Ministério Público e com a OAB para poder legitimar toda a sua violência. Com isso ele vai se sentindo legitimado para agir, mas as comunidades estão alertadas, estão se reunindo, fazendo assembléias com uma presença maciça. Porque o povo tem que entender, ou ele se organiza para resistir ou vai dançar, no sentido mais atual da dança: vão despejá-los sem dó nem piedade. O artifício jurídico é a comunidade se manter integrada, unida, para fazer a resistência e o apoio da Defensoria Pública e do Ministério Público, tudo isso está articulado. Tem todo esse trabalho que exige persistência.
Professor, como é que você vê os grandes jornais e essa sua dificuldade de ter espaço nos grandes veículos de comunicação?
Tem um sociólogo importante que é daquela equipe do Pierre Bourdieu na França, e ele vai chamar a imprensa de os novos cães de guarda. Os cães de guarda guardam o quintal do sistema, agora eles estão sendo instigados a atacar o povo. Eu não tenho espaço, eu escrevi para O Globo várias vezes e consegui publicar duas vezes, outras não.
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