segunda-feira, 19 de julho de 2010

Dono do meu destino, capitão da minha alma

Dono do meu destino, capitão da minha alma

Devaneio da minha alma, força que extrai me da realidade, arrasta me por sólo infértil dessa terra maltratada.
Insanidade dizem ser a definição daquilo que não sabemos explicar em forma comum, a inabilidade de comunicar nossas idéias, portanto todos nós em dado momento somos considerados insanos, mas não se deve confundir insanidade com a falta de controle.
Insanidade ao meu ver talvez seja aquele momento em que eu tenho guardado na memória e que não consigo traduzir, ver o sol nascer à beira mar, os pés descalços com aquele leve desconforto da areia entre os dedos, a brisa da madrugada vindo de encontro trazendo aroma de algas marinhas, a solidão momentânea e a rápida sensação de que se está sozinho no mundo enquanto todo o mundo dorme.

Mas isso tudo é de fato fácil falar, difícil é mesmo o que se passa por trás dos olhos naquele momento, naqueles breves suspiros por entre uma respiração e outra, o tentar achar significado pelo motivo de tão bem estar e o por quê não conseguimos eternizar tudo aquilo.
Alguns insanos ao decorrer de suas vidas levaram sorte e acabaram definidos como gênios, seriam eles capazes de traduzir ao total tudo aquilo que realmente se passava em suas cabeças ? Quando falavam sozinhos, estariam eles tentando argumentar consigo mesmos por falta de alguém insano tanto quanto eles próprios ?

Até que ponto conseguimos ensinar nossa psique e adestrar nosso subconsciente à nosso favor e à ponto de atravessarmos aquela linha imaginária que conhecemos como limites ? Seriamos capazes de não mais adoecer em nossos corpos e mentes apenas com a força do pensamento e pelo livre arbítrio ?

"Não importa o quão estreito seja o portão e quão repleta de castigos seja a sentença, eu sou o dono do meu destino, eu sou o capitão da minha alma".

- última parte do poema Invictus escrito por William Ernst Henley.
Um século depois de escrito, o poema "Invictus" foi o que manteve acesa em Nelson Mandela a esperança e a sanidade enquanto aprisionado em Robben Island cumprindo pena de trabalhos forçados.
Após ler a biografia de Mandela, e ter uma pequena porcentagem da idéia do tamanho que de fato esse personagem tem na história mundial, me deparei com esse poema, que trás palavras de força e determinação, e que não importa se ficaremos presos em nossas celas por 27 anos, seja ela numa África aterrorizada ou num escritório dentro de um arranha-céu, o importante é manter a sanidade da forma em que você acredita.

"Fora da noite que me encobre,
Negro como o poço de polo a polo,
Agradeço ao que os deuses possam ser.
Pela minha alma inconquistável.

Nas garras das circunstâncias.
Eu não recuei e nem gritei.
Sob os golpes do acaso.
Minha cabeça está sangrando, mas não abaixada.

Além deste lugar de ira e lágrimas.
Só surge o horror da sombra,
E ainda a ameaça dos anos
Encontra e me encontrará sem medo.

Não importa o quão estreito seja o portão,
quão repleta de castigos seja a sentença,
eu sou o dono do meu destino,
eu sou o capitão da minha alma"

William Ernst Henley (1849-1903)

domingo, 4 de julho de 2010

“A questão da moradia é ética, e não uma questão jurídica”

“A questão da moradia é ética, e não uma questão jurídica”

"Esse direito que nós temos aqui é o direito construído no século XIX pela burguesia. Os nossos juízes têm uma formação burguesa, é um direito individualista e individualizante", afirma Miguel Baldez. Foto: Gabriel Bernardo/Fazendo media.


 
Por Eduardo Sá, Gabriel Bernardo e Gilka Resende, 04.07.2010
 
Do alto dos seus 80 anos, Miguel Baldez nos ensina que mesmo os direitos elementares para a sobrevivência das pessoas, como o direito a um teto, não será garantido sem união e mobilização. O procurador aposentado do estado do Rio e eternamente professor considera os movimentos sociais, como o MST, vitais para a resistência. Sendo assim, é fácil descobrir porque não tem espaço na mídia comercial. Nos anos 80, Baldez foi responsável, junto a outros procuradores, pela criação do Núcleo de Terras da procuradoria do estado. O órgão deu uma importante contribuição para a garantia do direito à moradia e à terra pelas populações pobres. “Porque o povo tem que entender, ou ele se organiza para resistir ou vai dançar, no sentido mais atual da dança: vão despejá-los sem dó nem piedade”, sentencia.

Como você entrou na militância pela moradia? Nos conte um pouco da sua história.

Eu tenho uma posição de esquerda desde que eu começo realmente a entender a vida. Eu tinha uns 31 anos, foi na renúncia de Jânio Quadros. Eu nasci em 1930. Em 1937, meu pai foi trabalhar na Panair do Brasil e tinha um companheiro judeu alemão. A guerra vem em 1939 e esse seu companheiro fazia um esforço para tirar a mãe antes que explodisse a guerra: ela sofrendo já todas as perseguições que eram feitas aos judeus a Alemanha.

E eu moleque com 8 anos, numa casa pequena e simples no subúrbio, pobre, filho único. Eu ficava ali ouvindo aquele papo, e papai sempre numa postura rigorosamente anti-fascista. Tinha vários amigos comunistas, mas ele não aceitava talvez pelas dificuldades espiritualistas dele. Minha família era espiritualista. Eu ficava ouvindo aquela conversa e tinha horror do fascismo desde os meus 8 anos. Papai dizia para mim: “Ô cara, você é comunista, você que não percebeu ainda”.

E eu sempre sentia, mas não tinha uma avaliação nítida das minhas opções políticas. Até que em 1960 o meu pai morre. Em 1961 vem a renúncia do Jânio Quadros, eu estava estudando para o concurso de procurador do estado. Aí as coisas ficaram claras na minha cabeça: foi a explosão da renúncia do Jânio que me fez entender. A coisa bateu assim na minha cabeça, e eu disse: “Bom, agora é a hora de eu ler Marx”. Fiz o concurso achando que tinha sido reprovado na primeira prova, até que veio a notícia de que eu tinha passado. Para mim era fundamental que eu fosse procurador, para eu poder escapar: já era casado, tinha filhos. Quando eu fui nomeado procurador, em 63, eu já tinha uma leitura política muito forte e já estava numa militância.

É nesse período que você se aproxima da questão da moradia?

Não, nesse momento eu entrei de corpo e alma no movimento sindical. Foi o período em que vai surgindo o sindicalismo no ABC, é um sindicalismo de combate, de enfrentamento. Eu estava no Sinpro [Sindicato dos Professores]. Eu que não era do PT me identifiquei com aquele grupo porque queria realmente o enfrentamento, um sindicalismo que fosse de libertação da classe trabalhadora.

O paradigma de pensar uma nova forma de luta…

Uma nova forma de luta sindical, era o momento histórico para isso. Nós fizemos uma comissão de fábrica vitoriosa naquela famosa greve da Fiat, em que os sindicatos se apelegaram e os trabalhadores na comissão de fábrica lideraram a greve. Esse grupo era de um PT combativo e naquela altura eu senti necessidade de ir para o PT. Nisso surge na procuradoria de estado um grupo com 13 associações de moradores da zona oeste, liderados por uma companheira da FASE, a Grazia [de Grazia], que hoje está no governo do Eduardo Paes. O prefeito era o Emir Haddad, o município na época não tinha procuradoria, e ele disse que era uma questão jurídica e para procurar a procuradoria do estado. Eles foram lá, e naquela altura um grupo mais progressista de uns quatro procuradores, o que é uma coisa muito rara, já tinha resolvido democratizar a procuradoria do estado.

"Esse direito que nós temos aqui é o direito construído no século XIX pela burguesia. Os nossos juízes têm uma formação burguesa, é um direito individualista e individualizante", afirma Miguel Baldez.



Nessa época já estavam pipocando muitas ocupações urbanas de terra?

Ainda não. O que havia na zona oeste eram processos de loteamentos que eram iniciados e abandonados pelo loteador, que seguia o preço e não realizava as obras. Esses grupos é que procuraram o prefeito, que os encaminhou a nós. Foi nesse momento, quando nós ganhamos a procuradoria, que passamos a fazer um trabalho compatível com a redemocratização.

Eu já tinha a minha tradição de militância, e entre vários colegas o Eduardo [Seabra] me chamou para formar uma comissão para examinar o que poderíamos fazer. Chegamos a nossa conclusão, e a encaminhamos ao Brizola que encaminhou ao Marcello [Alencar], o prefeito biônico da época [nomeado pelo governador]. O que nós esperávamos aconteceu, o Marcello botou na gaveta. Aí nós pensamos: o Eduardo poderia, de ofício, criar um núcleo na procuradoria, a comissão tinha esgotado as suas ações para enfrentar essa questão. Aí foi criado o Núcleo de Terras e dentro dele criamos o Coletivo da Terra.

Esse coletivo que estabelecia contato com essas comunidades?

Ele discutia todas as questões políticas e era formado pelas comunidades, era aberto. O Núcleo de Terras vai ganhar uma força muito grande. Fui praticamente a todas essas comunidades na zona oeste, fazíamos a notificação, suspendia-se o pagamento e eu ia à própria comunidade dizer porque tinha sido suspenso. Eu que era o coordenador não poderia receber qualquer loteador que não viesse encaminhado pelos integrantes do loteamento, porque era uma forma de exigir do loteador que cumprisse as suas obrigações. Nós assumíamos os encargos do loteador faltoso e o município fazia a obra que ele não tinha feito. Tínhamos conosco uma arquiteta que ia fazer o laudo na própria comunidade quando nós suspendíamos o pagamento, para ver que obra precisava ser feita. Esse laudo era feito com a participação da comunidade e quando era aprovado, nós o encaminhávamos para a engenharia. Isso é botar o povo no poder. O segundo fato era manter a mobilização. Aí o coletivo votou essa posição: a comunidade que se desmobilizar perde a vez. Então eram dois critérios, o primeiro cronológico e o outro da mobilização. E aí fizeram realmente um trabalho, que eu repito, talvez o mais importante da procuradoria do estado.

"A primeira resistência foi essa dos companheirinhos favelados, essa foi importante porque a favela tem uma nova concepção: passa a ser uma solução para a moradia", destaca Baldez.



Esses critérios estão no estatuto do Núcleo de Terras, ainda são os critérios adotados?

Não, aí eu vou dizer como isso acabou. Vem a eleição e Darcy Ribeiro não ganhou, que era vice-governador. Depois o Eduardo me convida para dirigir a procuradoria de terras, o Darcy queria construir os Cieps e não encontrava respaldo na procuradoria do estado. Ele foi fazendo contratos com as empreiteiras e a procuradoria não dava as terras. Eu chefiando podia cobrar do meu colega procurador com mais eficiência, e isso foi um trabalho realmente simultâneo que se fez. Até que esse grupo que tinha na época a hegemonia na procuradoria do estado resolveu que era a hora de criar a procuradoria do município.

Mas essa procuradoria seguiu o trabalho que vocês desenvolviam no estado?

Pois é, é aí que vem a grande frustração. Um companheiro assumiu uma posição reservada e a procuradoria do município não seguiu o nosso projeto. Continua o Núcleo até hoje, mas essa conotação política não tem mais, essa presença da própria comunidade na ação política do município se perdeu.

Como você vê a relação da imparcialidade e o campo ideológico, na postura dos nossos juízes?

Esse direito que nós temos aqui é o direito construído no século XIX pela burguesia. Os nossos juízes têm uma formação burguesa, é um direito individualista e individualizante. Eu dou exemplo para os meus alunos que a classe trabalhadora, que seria o quarto poder, foi encapsulada na norma jurídica.

Quando você me pergunta como é que age o nosso juiz, o nosso Ministério Público, as nossas procuradorias: são todos eles formados nesse campo ideológico. Só se abrir na formação do juiz uma brecha pela qual possa passar uma cultura diferente. E qual cultura diferente é essa? A do trabalhador, exatamente esses que sofrem o processo burguês na pele. Quando nós trabalhamos esse Núcleo de Terras, daí a importância para mim teórica que tem, é que nós abrimos um espaço para a classe trabalhadora dentro do campo jurídico.

Então, é um juiz da norma, que vive no mundo das abstrações. A norma jurídica é um meio de que se vale o estado para desconstruir ou ocultar as contradições sociais.

Como é que a esquerda pode se apropriar do direito de forma eficiente a contrapor essa visão?

Bom, se apropriar do direito só ganhando o estado, só fazendo uma revolução. Mas hoje eu não posso pensar em revolução armada. Eu só vejo uma saída para esse cenário, é o movimento social, é a organização social. O caminho hoje, até que construa realmente uma ideologia mais definida, está nos movimentos populares. Aí eu tomo o exemplo do MST, ele vai usar a ocupação de terras como ação política, mas com uma eficácia jurídica: nega no concreto o direito positivado, por quê? Porque cria outra modalidade de aquisição de propriedade, que não está na lei. Isso é possível porque o Movimento Sem Terra está fazendo ocupações, e mais, rompe com a estrutura contratualista do direito burguês.

Um dos fundamentos do direito burguês é a subjetivação individualizante: se eu passo a dizer que eu sou o Eduardo, a Gilka, o Gabriel [repórteres do FM que estavam na entrevista], eu passo a ser subversivo, porque eu passei a ser um coletivo, não sou mais um indivíduo. Daí a importância que eu dou aos movimentos.

Você podia falar sobre essa luta pela moradia que se estruturou na história e no que se transformou hoje?

A primeira resistência foi essa dos companheirinhos favelados, essa foi importante porque a favela tem uma nova concepção: passa a ser uma solução para a moradia, e não uma parte doente da cidade que precisa ser extirpada. Teve a resistência das favelas contra as remoções, que foram a tônica dos governos de Lacerda, de Chagas Freitas e antes deles de Negrão de Lima. Hoje você tem Cidade de Deus, Vila Kenneddy, Vila Aliança, dentre outras, como resultados de todas essas remoções que se fizeram aqui.

Os companheirinhos vão se reunindo com o apoio da igreja e do Dom Eugenio Salles, que vai reunir advogados na própria arquidiocese para discutir a questão da favela com um olhar da fé e não com um olhar político. Todas essas forças vão confluir na direção do companheiro discriminado, os favelados. Eles sofrem um processo de exclusão social muito forte, o capital só se interessa pelo trabalhador como mercadoria, só se interessa pela sua força de trabalho.

Nas reportagens que o Fazendo Media tem feito sobre esse tema, todas as posições da secretaria são técnicas remetendo à Geo-Rio [Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro]. Como você avalia essa questão da política e a técnica como justificação?

Esse é um meio que se vale a administração para fazer os despejos massivos. A via técnica é uma via política, não é técnica. Porque com que legitimidade um instituto de geotecnia vai fazer esse laudo, quando a lei orgânica exige que o laudo seja feito por dois peritos, um representante do poder público e um representante da comunidade? A geotecnia não tem legitimidade, então o que eles fazem é um discurso competente.

A Marilena Chauí escreveu há muito tempo sobre isso, é o discurso competente: é a geotecnia que entende disso, então não se discute. Tem de discutir sim, não é uma questão de entender, a questão é outra: nós não confiamos no governo e conseqüentemente não confiamos na geotecnia. Mas mesmo se confiássemos, teria que haver um laudo com o representante do estado ou município, do poder público e do representante da comunidade.

Você participou da formulação da constituição de 88?

Participei. O município ganha uma personalização na estrutura federativa com essa constituição e, em conseqüência, tivemos as constituições estaduais e as Leis Orgânicas do Município. A Lei Orgânica do nosso município, em conseqüência da luta da classe trabalhadora favelada, tem um dispositivo, o artigo 429, que proíbe as remoções e admite no máximo o remanejamento para um outro local na mesma região para preservar o habitat do trabalhador. Essa é a grande conquista, e para isso confluíram forças de esquerda e forças da igreja democratizada pela teologia da libertação.

É hoje um instrumento jurídico de que tem se valido a classe trabalhadora para impedir os despejos massivos, mas apesar disso a força acaba preponderante. O prefeito faz um discurso sem qualquer comprometimento com a lei, mas buscando apoio das áreas jurídicas do estado. Ele fez uma reunião com a direção do Tribunal, com a direção do Ministério Público e com a OAB para poder legitimar toda a sua violência. Com isso ele vai se sentindo legitimado para agir, mas as comunidades estão alertadas, estão se reunindo, fazendo assembléias com uma presença maciça. Porque o povo tem que entender, ou ele se organiza para resistir ou vai dançar, no sentido mais atual da dança: vão despejá-los sem dó nem piedade. O artifício jurídico é a comunidade se manter integrada, unida, para fazer a resistência e o apoio da Defensoria Pública e do Ministério Público, tudo isso está articulado. Tem todo esse trabalho que exige persistência.

Professor, como é que você vê os grandes jornais e essa sua dificuldade de ter espaço nos grandes veículos de comunicação?

Tem um sociólogo importante que é daquela equipe do Pierre Bourdieu na França, e ele vai chamar a imprensa de os novos cães de guarda. Os cães de guarda guardam o quintal do sistema, agora eles estão sendo instigados a atacar o povo. Eu não tenho espaço, eu escrevi para O Globo várias vezes e consegui publicar duas vezes, outras não.

http://www.fazendomedia.com/%e2%80%9ca-questao-da-moradia-e-etica-e-nao-uma-questao-juridica%e2%80%9d/

sábado, 3 de julho de 2010

Carta Aberta da Sociedade Civil à CIDH

Carta Aberta da Sociedade Civil à CIDH



Rio de Janeiro, 29 de junho de 2010.


Carta Aberta à Comissão Interamericana de Direitos Humanos

"Prezados Senhores,
Ao tempo que as organizações signatárias saúdam este encontro e reafirmam seu compromisso político com o fortalecimento do sistema interamericano de proteção de direitos humanos, somos levados a reiterar a necessidade de que seus mecanismos amiudem as iniciativas de diálogo com a sociedade civil brasileira. Nos ressentimos e lamentamos o lapso transcorrido entre as visitas feitas pela CIDH ao nosso País.
O relato não exclusivo de processos violadores de direitos humanos que aqui partilhamos tem sido objeto da intervenção cotidiana destas organizações, sendo já levados também às instâncias nacionais, regionais e ao sistema universal de proteção de direitos humanos.

As realidades aqui descritas sintetizam a permanência (e em alguns casos a ampliação) de uma lógica de desenvolvimento elitista e de uma cultura estatal opressora que se assentam, se renovam e resultam na criminalização dos pobres, na destruição socioambiental e na negação da dignidade. Portanto, a violação do direito à cidade e à habitabilidade adequada, o extermínio de crianças e jovens, a cultura do hiper-encarceramento e a violência institucional massificada não são expressões localizadas ao Rio de Janeiro. Estão de Norte a Sul do território. Fazem parte de uma trajetória histórica ainda não superada e expressam nossa dívida social e democrática. Ao contrário de um certo ufanismo, intencionalmente alardeado, sobre a situação da sociedade brasileira na presente quadra histórica, podemos afirmar que as graves e extensivas violações cometidas contra direitos humanos na sociedade brasileira, com o assentimento do aparelho estatal, revelam o desafio existente para alcançar patamares democráticos de promoção e garantia dos direitos humanos no País.
Diante de um quadro complexo de fatores que se coadunam para a deflagração de conflitos, temos testemunhado a execução de algumas políticas públicas ineficazes na solução dos problemas para os quais se destinam.

As incursões da polícia nas comunidades empobrecidas e, em sua decorrência, os casos emblemáticos de extermínio e de encarceramento massivo da adolescência e juventude negra, são o resultado de uma política de segurança pública baseada na lógica da criminalização da pobreza, do racismo e do confronto permanente. A cada ano a polícia tem sido responsável por cerca de 20% dos homicídios que ocorrem no estado, na maioria de jovens negros, moradores destas comunidades.
A violência e a discriminação contra as mulheres são manifestações das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres. Sustentadas pelo sistema ideológico do patriarcado, representadas nos estereótipos de gênero reproduzidos social e institucionalmente e manifestadas em múltiplas formas de opressão e exclusão, são hoje reconhecidas como graves violações aos direitos humanos na esfera internacional e nacional.

No Brasil, apesar dos esforços e avanços, a aplicação e efetividade da implementação da “Lei Maria da Penha” vêm sofrendo grandes obstáculos e distorções, que impedem o pleno exercício dos direitos de acesso à justiça, proteção judicial e garantias judiciais para as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. A aplicação da Lei é díspar no território nacional, com desigualdades regionais, problemas estruturais (em número, qualidade e articulação de serviços especializados) e vieses culturais, refletidos inclusive nos meios jurídicos.

Destacam-se ainda as violações aos direitos humanos ocorridas em relação à auto-determinação reprodutiva das mulheres, pela falta da devida diligência policial, do respeito ao direito ao devido processo e às garantias judiciais no contexto da atuação policial diante da ilegalidade do aborto, em particular como revelam episódios ocorridos no estado do Rio de Janeiro. Sabe-se que o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece a morbi-mortalidade materna evitável como uma questão de direitos humanos. Mais de 79 Estados Membros das Nações Unidas reconhecem que a questão da saúde materna é um desafio para o exercício dos direitos humanos e que os governos devem intensificar esforços para diminuir as altas e inaceitáveis taxas globais. O Brasil apoiou esta Resolução, entretanto não vem tomando medidas eficazes para redução destas taxas e vem optando pelo tratamento de um problema de saúde pública apenas pela lógica repressiva através de operações policiais sistemáticas que visam o fechamento de clínicas clandestinas de aborto. A criminalização do aborto contribui substancialmente para o aumento das taxas de morbi-mortalidade por aborto inseguro e gera situações de discriminação de gênero, seja no próprio texto da lei, através das práticas em saúde discriminatórias, ou ainda no tratamento dado pelo Sistema de Segurança Pública. Operações policiais no Rio de Janeiro não têm se pautado pelo respeito aos Direitos humanos das Mulheres, além de provocarem no interior das comunidades pobres do Rio de Janeiro medo e terror.

Esse tem sido o padrão da política de segurança pública em comunidades pobres do Rio de Janeiro: a mobilização de um grande aparato e um elevado saldo de mortos, sempre apresentados como “traficantes”. A polícia desse estado insiste em utilizar como critério de eficiência o alto índice de letalidade policial, respaldada e legitimada pelos autos de resistência, resultando no extermínio da juventude negra.

Os dados do Instituto de Segurança Pública mostram que a média de 3,3 mortos por dia no Governo Sérgio Cabral, o elegeu campeão de autos de resistência: em 2007, foi registrado o maior número absoluto (1.330) e a maior taxa por 100 mil habitantes (8,2). Em 2008 foram registrados 1137 autos de resistência.

Em todas as incursões policiais nas áreas mais pobres do Rio de Janeiro, as autoridades responsáveis, como o Governador Sérgio Cabral e o Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, deixam evidente a política de segurança pública temerária do estado: mortes são entendidas como meios necessários para o enfrentamento da criminalidade; o que significa dizer que a letalidade da ação policial é encarada como parâmetro de sucesso. Essa lógica tem reforçado o estigma e o preconceito com relação aos moradores de comunidades do Rio de Janeiro.
As chamadas Unidades de Pacificação da Polícia (UPPs), implantadas como vitrines, com apoio e incentivo do governo federal, não representam uma alternativa real à atual política de segurança. É certo que o número de mortos por agentes do estado diminuiu nessas comunidades. Mas a ação criminalizadora da pobreza persiste. Inúmeros são os casos de agressões sofridas por moradores. Muitas vezes, além de vítimas da ação policial são autuados por desacato à autoridade, em uma explícita manifestação da criminalização a que as comunidades estão submetidas. Vigiados por câmeras, são revistados constantemente e têm suas manifestações culturais controladas de forma arbitrária pela polícia.

A criminalização da pobreza e o controle também estão presentes na construção de muros em torno de favelas do Rio de Janeiro. Sob o pretexto de preservação da mata atlântica ou isolamento acústico, este tipo de política pública é mais uma demonstração de uma política oritentada pela segregação e pelo apartheid social.

Na mesma linha da segregação e de políticas de “limpeza social”, a operação choque de ordem efetivado pela prefeitura do Rio em parceria com o governo do estado, em vigor desde o dia 5 de janeiro de 2009, tem por objetivo realizar ações contra vendedores ambulantes, flanelinhas, pessoas em situação de rua e ocupações urbanas. Apesar do Choque de Ordem visar uma abrangência de ação em todo o município do Rio, seu foco, majoritariamente, tem sido territórios nobres do Rio de Janeiro, como Zona Sul, Barra da Tijuca / Recreio e Centro, áreas de maiores concentrações de riqueza da cidade. O Choque de Ordem é executado violando direitos humanos, sociais, econômicos e culturais.

O projeto de desenvolvimento econômico em curso no Brasil, em grande parte impulsionado pelo PAC (Programa de Aceleração do Desenvolvimento), que busca acelerar o crescimento econômico por meio de pesados investimentos em infraestrutura, tem resultado em inúmeras violações de direitos humanos.
Os investimentos previstos no âmbito do PAC para o Rio de Janeiro são do montante de R$ 94 bilhões até 2010, sendo R$ 66,5 bilhões em infraestrutura energética, 4,7 bilhões em logística e R$ 12 bilhões em infraestrutura social e urbana. No que concerne à infraestrutura logística o grosso dos investimentos visa ao escoamento da produção regional para exportação por meio do Arco Rodoviário do Rio de Janeiro e pela construção de um pólo portuário na Baía de Sepetiba conectado diretamente com a exploração de minério e produtos siderúrgicos semi-elaborados. Soma-se a isso o enorme apoio do Estado à instalação de um pólo siderúrgico na região. No que concerne à infraestrutura energética, boa parte dos investimentos foram direcionados para a Baía de Guanabara, em particular para a Petrobras, para a ampliação de sua capacidade produtiva e a construção de gasodutos para escoamento de gás natural.

Esses investimentos apresentam, como traço comum, irreparáveis danos sócio-ambientais, além da exclusão das populações naturais dessas mesmas áreas, normalmente constituídas por populações e comunidades tradicionais, como pescadores artesanais, caiçaras, quilombolas e indígenas, o que constitui exemplo claro de racismo ambiental.
A escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016 traz grande preocupação para os movimentos populares, sociais e para as organizações de defesa dos direitos humanos. À luz do que vivenciamos com a realização dos Jogos Pan-americanos em 2007, estamos preocupados com os inúmeros despejos, remoções, mega-operações policiais, retirada de moradores de rua, que se anunciam para tornar o Rio uma cidade segura para sediar os jogos Olímpicos.
As comunidades que se encontram na rota dos Jogos Olímpicos, em especial àquelas da Barra da Tijuca, sofrem ações públicas de remoção, são indesejáveis, retiradas da cena olímpica, excluídas do Direito à Cidade, da celebração, dos benefícios e do legado dos Jogos, em uma declarada política de exclusão territorial, social e ambiental.

Nossa preocupação não se baseia somente na experiência pan-americana. A ECO 92 registrou um grande número de violações, sobretudo por ter contado com a presença ostensiva das forças armadas.
Ao longo dos anos, com a chegada do verão e dos turistas presenciamos a prática sucessiva do recolhimento da população em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro, feita pelo Poder Público – Tolerância Zero, Turismo Seguro, Lapa Limpa, Cata Tralha, Zona Sul Legal, Copa-bacana, Ipa-bacana, e, mais recentemente, “Choque de Ordem” – que intensifica as práticas desumanas, arbitrárias e violentas de outrora, com a criação de Secretaria Municipal de Ordem Pública.

Esse modelo de desenvolvimento econômico, além de promover o acirramento dos conflitos locais envolvendo essas populações e as empresas transnacionais, tem resultado em um forte processo de criminalização de defensores de direitos humanos e movimentos sociais, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, alvo de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional promovida por representantes de ruralistas e de empresas transnacionais que se opõem à reforma agrária e à agricultura familiar.

Diante dos fatos acima apresentados, as organizações que subscrevem essa carta solicitam a V.Exa. que:

- solicite informações a respeito das violações de direitos narradas neste documento e ao longo da presente reunião, e que cobre, tanto do governo do Rio de Janeiro, quanto do governo federal, uma postura de efetivo e integral respeito aos direitos humanos;

- inclua tais informações tanto nos Relatórios Temáticos ou sobre o Brasil, que venham a ser elaborados por esta Comissão, como também considere essas informações e dados como uma atualização de muitos contextos em que as violações de direitos humanos são perpetradas país. Tendo em vista que os casos que se encontram em processamento na CIDH, pela própria natureza do Sistema Interamericano, na sua maioria ocorreram há alguns anos atrás, o que no entanto não significa que os fatores que resultam na repetição dos fatos não sejam atuais e muitas vezes tenham se acentuado;
- interceda junto aos órgãos competentes da Organização dos Estados Americanos pela aprovação, na sua forma mais ampla, da Convenção Interamericana Contra o Racismo e todas as Formas de Discriminação e Intolerância, contemplando a garantia de direitos da maior diversidade de populações suscetíveis às práticas violatórias de racismo, discriminação e intolerância no Continente Americano."

Assinam a Carta inúmeras instituições, associações e ONGs.