Está é uma entrevista do professor Sérgio Salomão Shecaira concedida ao IBCCRIM: que aqui reproduzo.
Infelizmente, essa é a realidade do Estado do Espiríto Santo.
IBCCRIM - Prezado Professor, por gentileza, teça considerações sobre sua experiência à frente do CNPCP e a situação prisional no Estado do Espírito Santo.
SSS - Eu era presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que tem competência determinada pela Lei de Execução Penal para fiscalizar todos os presídios do País. E eu recebi uma solicitação, aqui em São Paulo, de uma organização não governamental que queria trazer uma acusação muito séria sobre questões do Espírito Santo. Recebi uma visita, no meu escritório, de uma comissão de militantes de Direitos Humanos que me diziam que existia uma situação extremamente grave naquele Estado.
Tendo em vista a gravidade daquilo que se afirmava, eu imediatamente solicitei que eles fossem à Brasília, e fizessem uma petição escrita ao CNPCP. Assim, colocaríamos na pauta da primeira reunião prevista. Foram à Brasília um rapaz chamado Bruno Sousa, então presidente da Comissão de Direitos Humanos do Estado do Espírito Santo, e a Dona Maria, mãe de um preso assassinado, que criou uma associação de mães de filhos que sofreram algum tipo de violência policial. Em Brasília, eu recebi uma denúncia de coisas absolutamente escabrosas, como a ausência do Estado em determinados presídios, o que motivava a ocorrência de inúmeros esquartejamentos de presos.
Em função disso, e dada à gravidade dos fatos, em vez de eu indicar uma pessoa, eu intui que aquilo era uma coisa ainda mais grave do que nós estávamos acostumados a lidar em outros Estados. E perceba: estamos acostumados a lidar com mazelas humanas em Estados que simplesmente esquecem presos, que cometem erros judiciários, etc. E eu mesmo me desloquei para o Estado do Espírito Santo, e me deparei com uma situação completamente inusitada, que é o Secretário de Justiça do Estado do Espírito Santo impedindo que uma autoridade federal, o Presidente do CNPCP, de visitar os presídios. Depois, quando admitiu a visita, impediu essa pessoa (que era eu), de fotografar o presídio, sendo que afirmava ser uma questão de segurança. E eu, então, perguntava: “segurança para quem?”, pois, afinal de contas, tirar uma fotografia do presídio não fere a segurança de ninguém. E então, eu fui verificando que ele estava ocultando alguma coisa. Visitei dois presídios: o de Cascuvi, na cidade de Viana, na Grande Vitória, onde há um complexo penitenciário; e uma área em que existe uma casa de custódia, que corresponderia à nossa antiga casa de detenção.
Na penitenciária de Cascuvi, eu percebi que se tratava de uma casa com capacidade para 300 presos, sendo que havia 1200, e tinha uma característica muito particular. Ela havia sido destruída em rebeliões anteriores e continuava superlotada. Como as portas das celas haviam sido destruídas, as pessoas circulavam livremente pelas dependências do presídio, e isso só era contido pelo perímetro externo, de tal sorte que os presos ficavam todo o tempo destrancados. Por outro lado, como eles ficaram com o domínio do presídio, nenhum guarda de presídio entrava no perímetro interno, o que motivava dentro da dinâmica do regramento interno dos presos uma série de assassinatos.
Como a administração não entrava no presídio, quando a comida chegava, eles colocavam as “quentinhas” dentro de grandes latões e os próprios presos faziam a distribuição dos alimentos. Após as refeições, as “quentinhas” vinham amassadas e nos latões também havia o lixo com os restos de comida. E em meio ao resto de comida destes vários latões, não nos esqueçamos que eram 1200 presos, eles matavam alguns presos e colocavam partes anatômicas dos corpos junto com estes restos, de tal sorte que eles esquartejavam os mortos e objetivavam se livrar dos restos do cadáver.
O que acontecia era que a família, que não sabia o que tinha acontecido, ia visitar seu parente no final de semana, ou dentro de quinze dias, e acabava não encontrando o filho lá. E a administração falava que o preso havia se evadido, não sabendo dizer como. E isso aconteceu algumas vezes, de tal sorte que o descontrole era absoluto. E fazia algum tempo que não existia luz elétrica. Imagine 1200 pessoas no escuro! E eles só eram iluminados a partir da muralha por holofotes, tal qual um campo de concentração nazista. Também não existia água por todo o dia. Ela somente era distribuída no final do dia, porque como eles destruíram alguns canos, toda a vez que se ligava a água, ela se perdia em meio aos buracos nos canos. Então, era um presídio sem luz e sem água, e sem administração. Eu acho que as masmorras medievais funcionavam melhor, por incrível que pareça.
Então nós fomos, em comitiva, conhecer um presídio dentro de um contêiner. Essa foi uma idéia do Governo Paulo Hartung (PSDB) de pegar contêineres com pequenas janelinhas e colocar vários presos lá dentro. Então, tinham em um contêiner, que é um local para colocar mercadorias, de 50 a 60 presos lá dentro. Era uma coisa absolutamente desumana. Quando os presos tinham que fazer suas necessidades fisiológicas, justamente por não terem banheiros, eles faziam nas próprias “quentinhas” vindas com comida, e voltavam com fezes, ou em garrafas “pet”, ou até mesmo através das janelas, quando urinavam para fora do contêiner. Era algo completamente chocante, com um monte de lama, fezes, ratos ao lado dos contêineres, uma sujeira. E eram contêineres empilhados, como se fossem o térreo e o primeiro andar. Era um cheiro completamente insuportável.
Havia pessoas com tuberculoso, escabiose (a conhecida “sarna”), que era uma coisa que eu pensei que não mais pudesse ver, pois quando vemos em um cachorro já ficamos com pena do animal, e imagina um ser humano com o corpo totalmente tomado! Tudo isso foi fotografado. Eu poderia me alongar falando de violências menores do sistema, mas creio que o sistema como um todo é uma violência.
Eu cheguei a ver uma modalidade de contêiner ainda mais perversa, a que chamavam ironicamente de “forno microondas”, uma vez que era um contêiner sem nenhuma janela, de tal forma que não havia ventilação, e o ar não circulava. Tudo isto sob a administração do Governador Paulo Hartung (PSDB) e do Secretário de Estado da Justiça, Ângelo Roncalli de Ramos Barros. Tivemos uma reunião com o Dr. Ângelo Roncalli, e ele disse que não poderia fazer nada. Nós montamos uma comissão intergovernamental, até seria uma coisa interessante para ele a fim de dividir a sua responsabilidade com o Governo Federal, Ministério Público, Magistratura... E eles sempre diziam que receberam uma herança maldita do governo anterior, e com a construção de uma penitenciária determinada isso seria resolvido. Só que essa penitenciária determinada não estava sequer licitada, nem mesmo uma maquete existia. Então eu disse que alguma coisa precisava ser feita, como por exemplo, a realocação de presos para outras penitenciárias. Da própria muralha da Cascuvi, pode-se ver duas outras penitenciárias moderníssimas com capacidade para 270 presos, administradas pela iniciativa privada. Porém, segundo o Secretário, não se podia retirar presos de outras penitenciárias para colocar nessa outra, porque dado o fato de ser uma penitenciária privada, existia um contrato, e a empresa privada o denunciaria caso isso acontecesse. Enfim, o Governo do Estado do Espírito Santo criou um preso de primeira e um preso de segunda categoria, em função da privatização do sistema. Isso era uma coisa complicada. E ele dizia não utilizar uma penitenciária que ele teve muitas despesas para construir, e colocar mais presos do que o planejado para não correr o risco de, no caso de superlotação, uma eventual rebelião acabar destruindo as instalações dessa nova penitenciária. Então ele deixava gente morrendo em condições absolutamente abjetas, enquanto existiam outras penitenciárias ao menos razoáveis, ou modernas. E ele se negava, era absolutamente refratário, a qualquer tipo de conversações.
Nós estabelecemos um prazo para um retorno e, como não houve retorno, eu levei o fato ao CNPCP, e por unanimidade o Conselho votou uma série de medidas. Dentre essas medidas eu propunha:
Ofício ao Conselho Nacional do Ministério Público para processar o Promotor de Justiça pela inércia, porque se negava a pedir interdição daquelas penitenciárias, em especial a de Cascuvi.
Ofício ao Conselho Nacional de Justiça para processar o Juiz, que também não tomava nenhuma medida.
Ofício ao Procurador Geral de Justiça para promover uma ação penal contra o Secretário de Justiça por tortura na modalidade omissiva.
Ofício aos Tribunais de Contas do Estado e da União, porque as medidas de construção dos presídios, segundo obtive informações, estavam sendo feitas sem quaisquer licitações.
Comunicação ao Ministro da Justiça e ao Conselho de Proteção aos Direitos da Pessoa Humana para noticiar o fato.
Ofício ao Procurador Geral da República para que propusesse uma ação de intervenção federal no Estado do Espírito Santo, e essa intervenção federal seria feita em função da não proteção dos agentes estatais, por parte das pessoas que estavam dentro de cárceres.
Depois, nós ficamos sabendo que também havia adolescentes presos em contêineres. Era a ponta de um iceberg que nós não imaginávamos ser tão grande. Ficamos, inclusive, sabendo da existência de camburões que abrigavam presos por tempo indeterminado. Apenas estacionavam o camburão no pátio, e deixavam os presos lá dentro. Eram coisas em condições completamente abjetas e subumanas.
O fato é que, com todos esses episódios, nós tomamos uma séria de medidas, e a principal delas foi o pedido de intervenção federal. E este pedido continua no gabinete do Procurador Geral da República. Houve um parecer da subprocuradora geral de Direitos Humanos favorável ao pedido de intervenção federal. Suponho que tenha sido esquecido, pois depois de um ano não tivemos nenhuma resposta. E cabe ao Procurador Geral da República fazer a análise de conveniência e oportunidade da intervenção federal.
Imprensa
Alguns contatos foram feitos, como audiências públicas para justificar o nosso pedido de intervenção com os representantes das igrejas evangélicas, igreja católica, representantes da sociedade civil, sindicato, entre outros. Essas audiências públicas ocorreram na sede da OAB- Seccional de Vitória. Em um primeiro momento, a imprensa noticiou amplamente nossas atividades, mas esta, em seguida, se calou completamente, por alguma razão. Baixou uma “lei do silêncio” no Estado do Espírito Santo.
Paralelamente, com a aproximação do final do meu mandato, e a não tomada de providencias por parte do Ministro da Justiça, o qual, aliás, tem um poder muito grande: o poder da caneta. Basta ele sustar o repasse de verbas para a construção dos presídios que o Governo do Estado imediatamente vai negociar, o que não foi feito.
O fato é que, com a conclusão do meu mandato eu solicitei em uma carta a não renovação do meu mandato. E, evidentemente, enquanto cidadão, eu me veria livre para articular outras medidas, dada a inoperância das instituições internas do País que não tomavam medidas enfáticas. Ressalva seja feita ao CNJ, que convocou uma comissão de magistrados, e confirmou tudo aquilo que nós alegávamos, chegando a fazer até um mutirão, que colocou na rua, ou por excesso de pena, ou por erros judiciários, cerca de 5% da população carcerária daquele Estado.
Dito isto, eu estive em reuniões com organizações não governamentais, entre elas a Justiça Global, que levou o fato à Corte Interamericana de Direitos Humanos, e eu não sei o andamento disso. E eu estive com a Conectas, que é uma entidade cuja sede é em São Paulo, para que a ela pudesse, na medida do possível, ajudar-nos nessa luta. A Conectas não só oficiou o Procurador Geral da República para perguntar o andamento do pedido de intervenção federal, como promoveu um pedido junto à Organização das Nações Unidas, alegando que o Brasil não cumpria os Direitos Humanos dentro do cárcere do Espírito Santo. E este fato veio à baila quando o Brasil foi chamado em Genebra para prestar explicações se o que foi noticiado pela Conectas era verídico ou não. Pondere-se que essa ONG juntou farta documentação e, principalmente, fotos que nós tiramos na nossa visita.
Repercussão Internacional
Uma vez que este fato teve repercussão internacional, as autoridades começaram a se mobilizar. Um dos presos, que estava recolhido em um contêiner, impetrou uma ordem de habeas corpus, a qual foi distribuída ao Ministro Nilson Naves, e ele proferiu, no último dia de exercício da sua judicatura antes de sua aposentadoria, um voto memorável que é um voto de indignação. [A reportagem sobre o memorável voto do Ministro Nilson Naves e seu inteiro teor já foram publicadas pelo PORTAL IBCCRIM. E por este blogger.
Novamente, foi o Judiciário quem fez alguma coisa, ainda que o Superior Tribunal de Justiça, pois é bom que se diga que o Tribunal de Justiça do Espírito Santo não tomou qualquer medida. Tanto é verdade, que eu tive que oficiar ao CNJ narrando a inoperância daquele juízo de execução, porque era absolutamente necessário que alguma medida fosse tomada. O Governo do Estado do Espírito Santo afirma que continua a construir presídios, mas o aumento da demanda prisional, bem como o aumento da punitividade, faz com que eles continuem abarrotados e em péssimas condições, como é de conhecimento público, e foi noticiado por inúmeros meios de comunicação.
IBCCRIM - O Sr. considera que a situação carcerária do Brasil é melhor do que outros países latino-americanos?
SSS- Acho que não. Eu estive em um congresso, há pouco mais de 1 ano, em São José da Costa Rica, e percebemos que o sistema penitenciário do Brasil é um dos piores. É um dos que mais experimenta superlotação. O problema penitenciário no Brasil é um problema gravíssimo, e isso decorre não apenas da incúria do Estado em relação a essas condições, mas também à mentalidade de tudo ser levado ao Judiciário e tudo acabar, em última análise, a uma pena privativa de liberdade. Acredito que devemos voltar a repensar o sistema como todo, tendo por base no resultado que produzimos atualmente. Não é admissível pensar que ainda nos deparamos com masmorras medievais, penitenciárias que mais parecem locais de tortura ou campos de concentração, pois isso está produzindo uma situação completamente desconfortável, em termos internacionais, para o próprio País.
IBCCRIM - Recentemente foram criados os presídios federais. O senhor acha que os presídios federais podem implicar redução na superlotação carcerária?
SSS- Na realidade, os presídios federais não possuem nenhuma finalidade no desafogamento de cárceres. Eles são mecanismos reguladores para retirar determinadas lideranças internas nos presídios, para que não fomentem rebeliões e reivindicações contra os governos dos Estados. Possuem vazão de poucas centenas de presos, e constituem-se como presídios de segurança máxima com isolamento entre os presos. Portanto, é um sistema que nada tem a ver com o encarceramento em massa que vemos nos Estados. E não possuem, tampouco, um condão modificador da situação experimentada nos presídios do Brasil.
O que cabe, para finalizarmos, é repensarmos a punição. Vejamos que de 1994 até 2007 a população brasileira cresceu cerca de 21%. E por que a população carcerária cresceu 320%? Nós não tivemos um aumento da criminalidade dessa ordem, o que ocorreu foi um aumento da perspectiva punitiva.
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